Ultima atualização 14 de maio

Os quatro tons mais escuros do consumismo

Consumo, logo existo

“O homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a vaidade em ação.” (Fernando Pessoa)

Consumo, logo existo
Ao contrário dos créditos das novelas, que informam “esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações terá sido mera coincidência”, o título deste artigo não foi escolhido ao acaso. Optamos por ele, inspirados em recente “fenômeno literário”, a fim de ilustrar a novela da vida real, que tem como trama o caráter sedutor e perverso que o consumismo pode revelar em certas circunstâncias. Compras impulsivas, gastos desnecessários, endividamento, dificuldade de poupar, de se preparar para o futuro ou para um infortúnio são dramas reais que podem acontecer com qualquer um de nós, independente de idade, classe social, formação acadêmica ou atuação profissional. Porém, todas são histórias de descontrole financeiro, um dos efeitos colaterais do consumismo numa sociedade que prioriza as aparências. Consumir num cenário onde nem tudo é o que parece (nem mesmo os “fenômenos”) pode ser arriscado. Precisamos estar atentos às armadilhas e propagandas enganosas, já que os produtos não vêm com o aviso de advertência: “Consumir este produto faz mal à saúde financeira!”.

Para compreendermos as raízes do consumismo atual, precisamos remontar ao século XVIII, mais precisamente à Revolução Industrial – período marcado pelo aperfeiçoamento tecnológico, com a substituição das ferramentas pelas máquinas, e que proporcionou um aumento significativo na produção dos bens de consumo. Mais do que isso, desencadeou uma profunda reorganização sociocultural sob a influência do liberalismo econômico e da necessidade de expansão dos capitais, através da ampliação do mercado de consumidores. A partir daí, o mundo nunca mais foi o mesmo. Novos valores, necessidades e preferências foram incorporados, e as modificações nas relações existentes entre capital e trabalho acabaram por demandar um novo perfil de consumo.
Agora, no século XXI, vivenciamos os efeitos decorrentes de uma sociedade de produção que migrou, rapidamente, para o que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman denomina de sociedade de consumo. Chegamos à chamada pós-modernidade supervalorizando o material e o simbólico, estabelecendo a lógica consumista em torno das aparências, do hedonismo, do narcisismo, da efemeridade e do individualismo, transformando praticamente tudo em produto de consumo. Aliás, o constante incentivo à aquisição de bens e serviços tornou-se uma das principais características do mundo atual, reduzindo muitas vezes o papel do indivíduo à condição de mero consumidor.
A sociedade de consumo sustenta sua existência e supremacia ao explorar algumas questões centrais à condição humana. Uma delas é a necessidade de satisfação de nossos desejos. Como todos nós somos seres desejantes, somos e sempre seremos consumidores. Por outro lado, também é da nossa natureza sofrermos de permanente insatisfação. Assim que adquirimos determinado objeto de desejo, este deixa de nos satisfazer e passamos a ansiar por um novo objeto. É por esse motivo que pagamos por um filme na modalidade pay-per-view, mesmo que o nosso pacote de assinatura de TV a cabo disponibilize, diariamente e sem custo adicional, centenas de opções de filmes e programas. Ou ansiamos por adquirir um tablet, mesmo que o nosso smartphone realize praticamente as mesmas funções. Assim, o mercado de consumo prospera em função desse dualismo, ora ocupando-se em satisfazer nossos desejos, ora produzindo novas vontades e necessidades. Desse modo, permanecemos fiéis e reféns a ele, em uma espécie de economia do logro, que opera tal qual uma propaganda enganosa. Ao manter esse ciclo atraente e tentador, perpetuamos nossa condição de permanente insatisfação.
Em matéria de oferta, nenhuma outra sociedade supera a atual. A transitoriedade e o excesso (fartura) estão no DNA da sociedade de consumo. E, para que o ciclo do consumismo gire mais rápido, a satisfação dos nossos desejos deve ser instantânea e o tempo do prazer desfrutado deve ser curto. Nesse cenário, o valor dos bens e prazeres vem sofrendo alterações dramáticas. A permanência, a durabilidade e a solidez foram substituídas pela volatilidade e a efemeridade, a tal ponto de aceitarmos com naturalidade a curta duração das coisas. Ou seja, o caminho entre a loja e a lata de lixo deve ser rápido. Pesquisas recentes ilustram este cenário: a população brasileira tem gastado menos com educação do que com itens de vestuário. Outra constatação é a de que a ascensão social modifica o comportamento de consumo: no Brasil, o incremento da classe média (hoje, maioria da população) se refletiu no aumento de consumo dos bens supérfluos. Já ocupamos, por exemplo, a primeira posição no ranking global de consumo de perfumes e cervejas e somos o país que mais produz gravatas no mundo.
Sabemos que a subsistência da nossa espécie depende de itens como habitação, alimentos, roupas, remédios e tudo o que é necessário para a manutenção da vida. Porém, as evidências indicam que o ato de consumir no mundo atual deixou de atender tão somente a tais necessidades básicas, indo além e assumindo, muitas vezes, uma dimensão simbólica. Nessa perspectiva, muitos produtos acabam sendo, primeiramente, sinais e só em segundo plano assumem a forma de objetos materiais. Ou seja, algumas vezes adquirimos determinados bens de consumo (produtos, serviços, tecnologia, informação) como forma de demonstrar (ou, até mesmo, obter) certas aptidões e virtudes. Desse modo, o consumo passa a atender outra condição humana: a necessidade de sermos notados, em maior ou menor grau. É o que denominamos de consumismo de aparências, que tem como meta o “fazer bonito”. O que importa na busca desse objetivo são as impressões que serão percebidas pelos outros.
No ponto extremo e disfuncional da supremacia das aparências, alguns podem se sentir compelidos a representar um personagem idealizado, emitindo falsos sinais à espera do reconhecimento por parte dos outros, personificando-se em “propagandas enganosas”.

Quando as aparências enganam
Ao evoluirmos em grupos sociais, a imagem e o status perante os outros adquiriram um caráter de objeto de desejo: o de aprovação social. Por exemplo, ao entrarmos em um shopping center é fácil perceber que algumas pessoas acabam adquirindo determinados produtos muito mais para impressionar os outros do que para usufruí-los. Vamos imaginar uma mulher que compra uma sandália nova. Qual seria a graça de usá-la em casa, sozinha, na frente da TV, sem ninguém por perto para admirá-la, elogiá-la ou invejá-la? Agora, imagine um homem que tenha gasto uma fortuna para adquirir um carro esportivo. Qual seria a sensação ao dirigir o seu reluzente veículo em uma cidade fantasma, sem nenhum habitante para contemplar a nova e imponente aquisição? Ou, fora da dimensão do consumo, postar fotos nas redes sociais, esperando contabilizar o maior número possível de “curtidas” e comentários, e ninguém se manifestar?
Os gastos que circulam na órbita do consumismo de aparências decorrem, geralmente, em função da necessidade de aprovação social. As pessoas necessitam, intrinsecamente, emitir sinais de aptidão umas para as outras. A princípio, este não é um atributo prejudicial nem exclusivo da condição humana – no reino animal ele também está presente. Além de garantir a sobrevivência, os sinais também são utilizados para atrair parceiros, impressionar amigos (e inimigos), garantir a prole etc. Uma das formas de atingir esses objetivos é adquirir e ostentar produtos que impressionem os outros.
Porém, você já parou para pensar o quanto as pessoas, sejam suas conhecidas ou não, realmente notam ou se importam com os produtos que você adquire? Como vivemos em uma sociedade que enaltece o consumismo de aparências, acabamos sendo guiados, principalmente, pela propaganda, e imaginamos que os outros se importam (e muito!) com os produtos que exibimos. Entretanto, as evidências comprovam que superestimamos a atenção que os outros prestam aos produtos que compramos.
A sociedade amparada pelo consumismo de aparências estimula, consequentemente, o consumo excessivo. E nessa direção pode desencadear uma espécie de “síndrome do delírio materialista”, cujo principal sintoma é o de reconhecer e julgar seus indivíduos, prioritariamente, não pelas suas reais capacidades, mas sim pelo que consomem. Assim, os bens materiais se transformam em “atestados de identidade” para compor uma imagem que seja curtida pelos outros. Ao adotar como lema “ser é ter”, a sociedade assume um caráter autoritário e de exclusão, obrigando seus membros a ter, sobretudo para pertencer e ser legitimado. Simultaneamente deflagra a vaidade consumista: “eu tenho, você não tem”; logo, “se eu tenho, e você não tem, então sou melhor do que você!”. Porém, aquele que supervaloriza essa vaidade corre o risco de se tornar uma vítima do “egocentrismo narcísico” ou da “Síndrome de Lance Armstrong”, numa condição de autoengano extremo, em que a pessoa se preocupa mais com as metas do que com os princípios e passa toda sua vida aparentando aquilo que não é. A punição maior nesse caso é perder o troféu de “o centro das atenções”. Lamentavelmente, seguindo a mesma trajetória dos bens de consumo, os valores humanos tornaram-se igualmente superficiais, instáveis e descartáveis.
Outro efeito colateral ao se eleger a aparência como o principal critério de valor, é uma constante sensação de dívida moral (frequentemente aliada ao rombo na conta bancária): “se eu não tenho determinado produto, então não sou”. Logo, “eu preciso ter isto para ser aquilo”. Como no caso daquela propaganda que aconselha que para sermos reconhecidos como uma pessoa de respeito é preciso ter tal carro na garagem. E, assim, se reinicia o ciclo do consumismo, que, mais uma vez, cumpre sua meta: garantir a nossa condição de permanente insatisfação. Consumir passa a ser tanto um dever quanto uma necessidade, numa busca na qual não se tem descanso.
Nas prateleiras das lojas, o consumismo de aparências pode se tornar também a busca para o alívio das “dores da alma”. Numa espécie de terapia, tudo passa a ser motivo para consumir: consumimos porque estamos ansiosos, porque estamos preocupados, porque estamos tristes, porque estamos felizes demais; consumimos para comemorar, para sermos iguais, para sermos diferentes. Na busca da aprovação social, conforme o grau de necessidade emocional, podemos identificar “os quatro tons mais escuros do consumismo”:

Grau 1: adquirir produtos e/ou serviços que não precisamos;
Grau 2: adquirir produtos e/ou serviços que não precisamos, com o dinheiro que não temos;
Grau 3: adquirir produtos e/ou serviços que não precisamos, com o dinheiro que não temos, para impressionar os outros; e
Grau 4: adquirir produtos e/ou serviços que não precisamos, com o dinheiro que não temos, para impressionar os outros e aparentar o que não somos.

Futuro? Que futuro?
Em tempos de consumismo de aparências, a regra básica passa a ser o carpe diem. Fazer tudo ao mesmo tempo agora, na busca do prazer imediato, tornou-se um hábito recorrente nas inúmeras situações da vida, não só no ato de consumir, mas também nos relacionamentos sociais, no convívio profissional e familiar, como no caso das relações face a face, que foram substituídas pelas “relações facebook”, por exemplo.
Se pararmos para pensar, essa conduta imediatista acaba por nos descaracterizar de nossa marca humana por excelência: a capacidade de reflexão. Num mundo que nos obriga a tomar decisões cada vez mais rápidas, acabamos sendo impelidos a fazer escolhas mais simplistas, sem muito planejamento e considerando quase que exclusivamente o curto prazo. Ao privilegiarmos o presente, desconsiderando as perspectivas de longo prazo em nossas decisões, incorremos num grave erro: desprezamos o futuro. Quando negligenciamos ou até mesmo negamos essa dimensão temporal, acabamos por penhorar o nosso amanhã, pois o consideramos algo muito distante e deixamos para pensar nele depois, iludidos pela crença infundada de nossa capacidade futura.
Essa alteração na percepção de tempo é muito semelhante a que ocorre quando se está sob a influência do álcool. A embriaguez reduz a visão de futuro a ponto de só o presente ser processado: o que importa é o prazer momentâneo. O fato é que poupar hoje para desfrutar o amanhã não é algo que nos traga satisfação imediata. Os impulsos de gastar e usufruir no presente acabam medindo forças com o amanhã e, diante da frustração em adiarmos uma gratificação imediata, optamos por “sacrificar” uma reserva futura em prol do ganho ou prazer instantâneo.
Frente este panorama, umas das provocações da pós-modernidade é comprometermo-nos com assuntos complexos, como longevidade, sustentabilidade, meio ambiente e responsabilidade social, pois, invariavelmente, teremos que lidar com eles, estando ou não preparados. Como define Umberto Eco, “o futuro deve ser o lugar para onde vamos, e não algo que virá até nós, onde estamos agora”. Onde estaremos amanhã dependerá das escolhas que fizermos hoje. O destino é o nosso futuro, a escolha é fundamentalmente nossa: ou ampliamos a nossa percepção temporal e incorporamos uma visão do futuro, planejando-o e construindo-o conforme almejamos, ou continuamos com a visão míope do aqui-e-agora e o acaso se encarregará dele.
Como consumir é algo inevitável, a questão não é abandonarmos o consumo e deixar de usufruirmos os benefícios tecnológicos herdados da Revolução Industrial: essa não seria uma atitude inteligente. Contudo, vivemos numa sociedade em que se sobressai a falta de políticas públicas e educacionais que estimulem o consumo consciente e previdente. A nós cabe o desafio de resistir à sedução consumista, assumindo o compromisso de construir uma vida sustentada em dividendos de longo prazo, mais duráveis, e de investir em mecanismos de proteção para o futuro, tais como a Previdência Complementar e o Seguro.

*Sérgio Rangel é atuário, professor de Atuária e de Gestão de Riscos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, professor de Gestão Atuarial no MBA em Previdência Complementar da ESPM/Mirador, acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP e consultor sênior da Mirador Atuarial ([email protected]).

*Luciane Fagundes é psicóloga, professora de Psicologia Econômica no MBA em Previdência Complementar da ESPM/Mirador e consultora da Mirador Atuarial. ([email protected]). 

 

 

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