Ultima atualização 14 de janeiro

Os microsseguros e o macrorrisco do paternalismo do Judiciário

Ivy Cassa

Desde a primeira vez que ouvi falar sobre “microsseguros”, alarmou-me o tema. Não pelos microsseguros em si, sobre os quais a experiência internacional já testemunhou a favor, mas por imaginar a forma como a nossa cultura brasileira irá acolhê-los.
E, recentemente, ao ler um julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, fiquei ainda mais receosa.
Explico: um segurado contratou seguro residencial para um imóvel, declarado como sendo de alvenaria, cujo risco foi aceito pela seguradora. Tempos depois, um incêndio destruiu totalmente o imóvel, que afinal se descobriu que era de madeira.
Diante disso, a seguradora negou o pagamento da indenização, e o juiz deu ganho de causa ao segurado, alegando que é de responsabilidade da seguradora a realização de vistoria prévia no imóvel. Segundo a lógica do magistrado, se a seguradora não faz vistoria prévia, ela consequentemente assume os riscos do negócio e não pode recusar a cobertura.
Ora, o contrato de seguro é um contrato de adesão, massificado, típico fruto das relações contratuais modernas. É da sua própria natureza ser coletivo – não de um só objeto – daí se falar em mutualismo.
Imaginemos dentro de um grupo de mil segurados, um seguro de vida cujo prêmio é de dez reais. Se a seguradora fosse fazer exames médicos prévios e profundos em cada um dos segurados, só o custo da realização de tais exames já seria superior ao valor anual do prêmio. Logo, o valor do prêmio do seguro teria de ser muito superior. E, assim, boa parte daqueles mil segurados não poderia mais contratar um seguro.
Portanto, a realização de exame médico prévio (no seguro de vida), ou de vistoria prévia da residência (no caso do residencial), encareceria a operação do seguro, afastando boa parte das pessoas deste tipo de operação.
E é justamente neste ponto que ganha lugar um aspecto fundamental do seguro: a boa-fé. Não se trata de mera falácia ou conceito puramente pedagógico para estampar os manuais de seguros.
A boa-fé é elemento genético do contrato de seguro, e deve existir das duas partes – tanto do segurado quanto da seguradora.
E por que razão, diante de uma omissão intencional do segurado a respeito de uma doença, ou do próprio material de que é feito a residência – condição essencial para que se possa precificar o seguro – é a seguradora que deve arcar com o prejuízo?
Nesse mesmo julgado, o magistrado traz ainda outro elemento: alega que na proposta de seguro o imóvel era classificado como “construção sólida – fator de risco 2”, enquanto na verdade era de “classe inferior de construção” – fator de risco 4.
E, com uma nomenclatura tão técnica, o segurado não teria como identificar qual seria a classe do seu risco. Por ter sido induzido em erro, estaria justificada sua falha com base nos ditames do Código de Defesa do Consumidor.
É fato: se o único documento que o segurado recebeu foi o tal que lhe pergunta sobre fator de risco 2 ou 4, concordo que o consumidor possa se sentir prejudicado.
Ocorre que o contrato de seguro, além das particularidades que destacamos acima, tem ainda mais uma que a distingue das demais: é um contrato que exige a presença de alguém que o nivele, do ponto de vista do conhecimento técnico, da seguradora – a figura do corretor.
E por existir esse profissional que esclarece tais aspectos, é de causar espanto que o segurado não tenha recebido maiores informações sobre o que significa o fator de risco. [Se isso de fato ocorreu, então aí sim existe uma irregularidade]. Mas qualquer um que já leu a apólice do seguro do seu automóvel, por exemplo, percebe que há uma porção de termos técnicos, preenchidos pelo corretor de seguros, que são a “tradução” daquilo que informamos para o tal do “segurês”. Por essa razão, também não parece que seja justa a alegação do magistrado.
Voltando ao assunto inicial, todo esse pano de fundo foi para ilustrar o porquê dos microsseguros causarem algum temor no contexto da sociedade brasileira.
Não se pretende aqui fazer generalizações, pois nem toda seguradora é “boazinha”, assim como nem todo magistrado é necessariamente leigo em seguros ou paternalista.
Mas preocupa saber que estamos avançando para novo estágio na história dos seguros – seja dos microsseguros ou dos seguros em geral -, mas alguns juízes decidem sem ponderar a lógica da operação securitária.
Então, é preciso definir o que queremos: uma política de seguros ampla, que possa atingir as mais variadas camadas sociais? Mais informalidade, menos engessamento da operação? Para isso, será preciso conscientizar nosso Judiciário de que os tempos são outros, e que não se pode separar o direito da economia, não julga bem quem não conhece a operação. E é fato que o Judiciário definitivamente não se baliza pelas normas da SUSEP – são dois mundos paralelos.
Ou então retroagiremos: em nome de um conservadorismo excessivo e segurança jurídica extrema, excluiremos as camadas sociais mais populares do seguro, produziremos montes de papéis para garantir uma “solenidade”, realizaremos exames profundos e vistorias complexas… ainda que visando apenas um seleto grupo capaz de pagar por tudo isso.
É preciso encontrar um equilíbrio entre o formalismo contratual, a operação dos seguros e seu equilíbrio atuarial, o preço, o papel efetivo dos corretores e a função do próprio contrato de seguro.
Enquanto tudo isso não for harmonizado, temo, sim, não só o futuro dos microsseguros, mas do mercado segurador como um todo, que caminha para a modernização, mas continua apanhando do Judiciário.

Ivy Cassa é advogada e atua no escritório KLA.

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